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1) Maise



Olhei a escritura tentando entender seu significado. Estava em nome de meu pai e dizia respeito a uma cabana e algumas poucas terras próximas a uma praia em um local chamado Portal do Sol, do qual nunca ouvira falar e nem mesmo me recordo dele ou de minha mãe terem mencionado. A data da escritura era de dois anos antes de meu nascimento.

“Porque meu pai, que odiava o litoral, teria uma casa na praia???” - Busquei novamente entre a pilha de papéis por alguma outra informação que esclarecesse, mas nada. Nem uma foto, nenhuma menção, nada! Apenas aquela escritura, um telefone e um nome anotados no verso.

“Papai nunca falou de algum Antonio. Esquisito demais.” - Pensei, sentindo um tênue rastro de esperança nascer.

“Talvez, mas só talvez, neste local alguém ainda se lembre dele e consiga mais informações sobre seu passado. Talvez...” - Interrompi o pensamento antes mesmo que formasse, não me permitindo criar ilusões quanto ao encontro de algum parente.

Meus pais faleceram juntos em um acidente de carro há alguns meses. Sempre vivemos sós e não conhecia qualquer parente. Papai dizia que seus pais tinham falecido e que perdera contato com o restante da família. Mamãe alegava que tinha mãe, tios e primos distantes, mas que não se davam bem e como parecia incomodada com o assunto não insistia, também porque nunca senti falta de mais alguém. Nós éramos unidos como jamais vi em outras famílias. Meus colegas de escola reclamavam dos irmãos, dos pais, de todos. Sem contar os que tinham pais separados, cada dia em maior número. Considerava-me quase que injustamente feliz demais e sentia até vergonha de não ter nada a reclamar. Parecia que estava deslocada naquela sociedade infeliz e vez por outra pegava uma coisinha minúscula qualquer, aumentava bastante e colocava para fora, igualando-me então.

Era uma aparência apenas. No fundo sabia que estava deslocada mesmo, que não pertencia a eles ou eles a mim. Não sabia se por este motivo ou por outro qualquer, mas o fato é que nunca tive amigos íntimos ou pertenci a um grupo como todos eles. Não me importava realmente. Meus pais e eu fazíamos muitas atividades em conjunto, eles tinham muitos amigos, nossa casa vivia cheia e meu tempo era totalmente preenchido.

“Bem, agora me importava.” - Pensei. Desde que faleceram estive só, exceto pelos advogados e os amigos de meus pais e mesmo eles foram embora depois que tudo terminou. Apenas um ou outro ainda telefonava vez por outra, convidando para sair, almoçar, jantar, visitar e coisas assim, mas eu desejava - precisava - tanto da companhia humana que as recusava, envergonhada desta necessidade, temerosa de que a enxergassem em meus olhos ou em alguma atitude que tomasse. Não queria piedade, ou compaixão. Queria um abraço sincero, amigo, cheio de amor, como os que minha mãe me dava quase todos os dias, ou meu pai quando voltava de alguma pequena viagem.

Esforcei-me para retomar a vida normalmente e concentrei-me na faculdade. Tinha 20 anos e estava no 2º ano de Artes Plásticas, minha paixão. Não que fosse realmente brilhante ou tivesse algum talento incomum. Papai sim tinha talento. Estava começando a ser famoso, mas seus quadros já eram muito bem valorizados. Eu apenas tinha esta compulsão por desenho e pintura. Gostava de me expressar desta forma. Talvez, pensava, de tanto tentar um dia acabasse por produzir algo digno de nota.

Agora, entretanto, estávamos nas férias letivas, tinha dois meses vazios pela frente e nem a menor idéia de como os preencher. Estava cansada de ficar em casa, só. Talvez uma viagem, pensava. E o litoral era mesmo uma tentação. Tinha ido algumas vezes com minha mãe, já que meu pai se recusava a nos acompanhar, mas eram sempre viagens rápidas. Eles não gostavam realmente de estarem distantes um do outro por muito tempo.

Sem estar ainda totalmente decidida, resolvi arrumar os papéis deles antes, com esta vaga esperança de encontrar algo, uma pista a seguir, que me levasse ao encontro de parentes vivos. Após horas olhando documentos, extratos bancários, certificados e todo tipo de papel burocrático, encontrara aquela escritura junta à de nossa casa.

Em um súbito ataque de covardia hesitei, guardando tudo antes de discar o número do tal Antonio, sem saber muito bem o que dizer ou o que esperar.

O próprio Antonio atendeu e expliquei rapidamente a situação. Para minha surpresa, não apenas lembrava-se de meu pai, como pareceu bem chateado quando contei sobre seu falecimento. Ele confirmou que a cabana ainda existia e que era de meu pai, realmente. Falou-me um pouco sobre isto.

Parece que meu pai morou lá por um ano e que Antonio e ele eram amigos. Que meu pai decidira ir embora de um dia para o outro, sem muita explicação e que apenas lhe solicitara o favor de cuidar de vez em quando do local até que decidisse o que fazer. Como nunca mais teve qualquer notícia, continuou cuidando e esperando.

“Ele deve mesmo ter gostado de papai! São mais de 20 anos sem notícias!” - Conclui em pensamentos.

- Estou indo aí, passar uns dias e aproveitar para conversarmos melhor. Então vejo o que fazer com ela. Tudo bem?- Ouvi surpresa minha própria voz dizer isto.

- Lógico, querida, será um prazer conhecer a filha de Artur. - Disse com voz realmente calorosa e meus olhos instantaneamente ficaram úmidos. - “Idiota sentimental!”- Pensei recriminando-me.

Desliguei o telefone, ainda meio aturdida com as novidades e a decisão que tomara por impulso. Ao fim, isto era algo. Poderia não dar em nada, mas ao menos preencheria parte de meus dois meses de vazio.

Portal do Sol! – Disse em voz alta. O nome soava bem e queria já estar lá.

Texto registrado no Literar

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