Suspirei aliviada quando Adriel se foi. Estava difícil esconder a emoção. Desde o primeiro minuto que vi o baú, soube que iria desmoronar e não queria ninguém - muito menos ele - por perto quando isto acontecesse. Desatei a falar para me distrair o suficiente até estar só em minha cabana.
“Ainda não.” - Pensei. Não queria me entregar às saudades neste momento. Primeiro queria ver tudo que tinha ali dentro.
Antes mesmo dele sair já tinha tirado as peças de roupa que estavam por cima, protegendo os papéis e objetos de baixo. Peguei primeiramente um rolo grande de telas.
“O que papai pintara enquanto estivera ali?” – A ansiedade me queimava, mas o levei até a mesa abrindo com cuidado para não correr o risco de estragar. Depois de tanto tempo guardadas, não sabia o estado em que estavam.
- Mamãe! – Exclamei surpresa ao reconhecer nela a jovem retratada na primeira tela, estranhando sua juventude. “É lógico, anta!!! Você nem tinha nascido ainda!” – Ri ao perceber minha estupidez e a observei enlevada. Tão absurdamente linda. Teria sido assim realmente ou seriam os olhos generosos de meu pai? Não que não fosse bonita como a recordava, duas décadas após, mas nesta tela surgia como a criatura mais bela que jamais vira. “Exceto ele.” – Corrigi mentalmente quando o rosto perfeito de Adriel surgiu em minha mente. - “É. Exceto ele.”
Depositei a tela com cuidado em cima da cama e olhei a próxima. Mamãe novamente. Na praia agora. Na anterior estava em um lugar que eu ainda não conhecia, perto de algumas árvores. Na próxima e na próxima e em todas: mamãe. Pintada com diversas técnicas e em várias poses, mas sempre sorrindo. Nas pedras, saindo do mar, caminhando pela orla, na cabana, na entrada, em outros lugares desconhecidos, mas sempre ela e apenas ela. Com os cabelos compridos soltos, trançados, presos, com flores e sem. Vestidos leves e graciosos, aquela pose aristocrática de princesa que lhe era tão natural e o seu olhar.
Impossível deixar de notá-lo repetido em todas as telas, em qualquer posição que estivesse. Era o mesmo olhar dela para ele que vi infinitas vezes em casa e que parecia derreter de tanto amor, como se contemplasse embevecida uma maravilha. Quase o mesmo olhar dele para ela.
Antes que a emoção me pegasse de jeito, enrolei as telas novamente e voltei ao baú.
Cadernos. Contei nove deles. Abri o primeiro e reconheci a letra de meu pai e sua bagunça típica. Palavras soltas, riscadas, acrescentadas. Frases, desenhos, símbolos. Nada coerente a olhares menos acostumados, mas para mim surgia como um texto corrido de tão fácil. Papai tinha este hábito, de anotar coisas soltas conforme ia pensando ou lembrando, para deixar registrado e depois não esquecer alguma idéia ou assunto. Em casa tínhamos montes destes cadernos.
A primeira página deveria ser do dia em que chegou. Desenhos de caminhos esburacados ao lado de símbolos de xingamentos, lista de compras de mantimentos, anotações de cores: amarelo, ouro, abóbora. Um sol. Ri. Papai deve ter gostado da luz daqui, em suas primeiras impressões.
“Meu Deus! Os diários de papai!” – Meu coração pulava descontrolado. Com certeza continha toda a estória deles. Demoraria a ler tudo, mas aqui estava!
Voltei para o restante do baú. Mais roupas dele. Materiais de pintura. Pincéis, tintas, lápis, carvão, papéis, esboços. Paisagens e mamãe ou partes dela. Estudos de suas mãos, pés, pescoço, cabelos, face.
Um lenço feminino. Levei ao nariz e aspirei, mas o perfume se fora. Será que naquela época ela já tinha aquele cheiro de folhas verdes que me fazia lembrar o sereno nas folhas das plantas de nosso jardim?
Amarrei o lenço no pescoço e continuei a tirar objetos do caixote. Mais algumas roupas. Um pijama. Ri novamente, enternecida com as lembranças de meu pai nestes pijamas de malha de algodão confortáveis.
Tirei meu vestido e o vesti, dobrando mangas e pernas. A sensação de aconchego foi tão forte que marejou meus olhos. Forcei-me a continuar.
Uma pasta agora. De plástico, com elástico. Papéis, contas, correspondências. Passei os olhos apenas. Teria que olhar com calma depois. Contatos com seu marchand. Erick. Não era o mesmo. Porque teria mudado?
Alguns poucos livros. Dois de arte, um de viagens, um romance e um de poesias. Papai amava ler, mas parece que aqui não lia muito, se bem que o de poesias aparentava ter sido muito manuseado.
Folheei-os rapidamente procurando por algum papel. Na coletânia de poesias, uma página estava marcada com uma flor seca. Uma rosa. Lembrança de mamãe, com certeza. Era um poema de E. E. Cummings, traduzido por Augusto de Campos:
“nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto
teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa
ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;
nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira
(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas.”
“Nossa, que lindo!” – Quem será que tinha marcado a página? Ele ou ela? Leriam juntos?
Com o livro nas mãos, deitei na cama e tentei os imaginar no ambiente. Ela teria morado aqui ou apenas o visitava? Visualizei ambos em diversas cenas domésticas e impressionei-me de como era fácil ver os dois neste local. Tinha jeito de ninho de namorados.
E eu? Teria sido concebida nesta cama? Seria por isto que saíram apressados de Portal do Sol? Porque ela estava grávida? Teria um pai dominador? Um namorado ciumento?
Antes que minha imaginação fértil entrasse em delírios maiores, resolvi guardar tudo e continuar amanhã. Precisava de um descanso agora. Escovei os dentes, peguei meu copo de água e deitei ainda vestindo os pijamas de meu pai, com o lenço de minha mãe ao pescoço e o livro ao lado.
Estava me sentindo esquisita. Feliz com este passado descoberto, mas com muitas saudades deles. Reli o poema de Cummings novamente.
“só uma parte de mim compreende que a voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas”
Uma lágrima vazou através do frágil dique que tentava há horas manter. Deixei vazar. E várias seguiram até que a barreira desmoronou de vez. Não tentei reconstruir. Soltei a imensidão de saudades, abraçada ao livro que os tinha, até dormir ainda soluçando.
Texto registrado no Literar.
Imagem encontrada aqui.
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